Como uma das partes de um cenário volátil, os clubes de futebol enfrentam desafios que vão além das quatro linhas. A opção pela Recuperação Judicial, regulamentada pela Lei 11.101/2005 (“LRE”), tem se mostrado um instrumento eficaz para a reestruturação financeira, preservando a atividade econômica e garantindo maior previsibilidade aos credores. No contexto esportivo, a recente jurisprudência e as alterações legislativas conferem ao instituto nova relevância.
A base normativa e o enquadramento para clubes
A LRE estabelece os requisitos para o deferimento do pedido de Recuperação Judicial, em especial: demonstração de crise econômico-financeira, relação de credores, apresentação do plano de recuperação e suspensão das execuções (arts. 6º e seguintes).
Historicamente, havia certa resistência em admitir que associações civis — forma predominante entre os clubes — pudessem se valer do instituto. Contudo, a Lei 14.193/2021 (Lei da Sociedade Anônima do Futebol – SAF) passou a prever expressamente que o clube ou a SAF podem requerer Recuperação Judicial, ou Extrajudicial, mesmo que constituídos como associação civil.
Além disso, a jurisprudência vem reconhecendo que o critério formal de ser “sociedade empresária” não deve impedir o acesso à Recuperação Judicial quando o clube exerce atividade econômica organizada e preenche os demais requisitos legais.
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Créditos concursais e isonomia entre credores
Um dos pilares da Recuperação Judicial é o respeito ao concurso de credores, ou seja, o tratamento isonômico entre todos aqueles que possuam créditos existentes até a data do pedido. A correta classificação entre créditos concursais (anteriores ao pedido) e extraconcursais (posteriores) é fundamental para que o plano de recuperação reflita fielmente a realidade patrimonial e a ordem jurídica.
No caso dos clubes, essa distinção ganha contornos complexos: obrigações derivadas de contratos de atletas, transferências, direitos federativos ou sanções impostas por entidades esportivas frequentemente se sobrepõem no tempo. A jurisprudência mais recente tem reforçado que valores devidos antes do pedido de Recuperação Judicial devem seguir o plano aprovado em juízo, não podendo ser tratados isoladamente conforme regras associativas, sob pena de violação ao princípio da igualdade entre credores.
O contexto esportivo e as sanções associativas
No ambiente do futebol, a atuação de órgãos como a CBF e a CNRD (Câmara Nacional de Resolução de Disputas) pode impor restrições severas a clubes endividados, desde a proibição de registrar atletas até o rebaixamento administrativo. Quando tais penalidades decorrem de débitos anteriores ao pedido de Recuperação Judicial, surge uma tensão entre o direito desportivo e o direito empresarial.
A jurisprudência recente tem consolidado o entendimento de que a legislação recuperacional deve prevalecer nesses casos. Não se trata de criar exceção para o futebol, mas de assegurar a coerência do sistema jurídico em que sanções privadas não podem frustrar os efeitos de uma decisão judicial que visa reorganizar a atividade econômica e preservar empregos, contratos e investimentos.
A decisão recente e seu impacto para o setor
Um exemplo desse avanço foi a decisão proferida pela 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem de São Paulo, que concedeu liminar em favor de um clube em Recuperação Judicial, o Oeste Futebol Clube, impedindo a aplicação de penalidades pela CNRD/CBF relacionadas a créditos anteriores ao pedido. A magistrada entendeu que tais valores são créditos concursais e, portanto, devem ser pagos conforme o Plano de Recuperação Judicial aprovado em juízo.
Como destacou o advogado Odair de Moraes Júnior, sócio do Moraes Jr. Advogados e responsável pela condução do caso:
“O Judiciário Paulista age de forma correta, porque não existe regra excepcional na legislação recuperacional sobre exclusão de créditos no âmbito da CNRD. São credores concursais comuns e não podem ter tratamento diferenciado. Essa decisão abre um importante precedente para que os clubes em reestruturação busquem a devida proteção jurídica contra possíveis punições da Confederação.”
A determinação reforça a prevalência da legislação recuperacional sobre normas internas de entidades privadas e marca um precedente relevante para outros clubes brasileiros que enfrentam processos semelhantes.
Desafios e boas práticas
Apesar do avanço jurisprudencial, o uso da Recuperação Judicial no setor esportivo exige planejamento e governança. Entre os principais cuidados, destacam-se:
- Mapeamento completo do passivo, incluindo dívidas trabalhistas, contratuais, tributárias e associativas;
- Planejamento financeiro realista, com projeção de receitas e metas de sustentabilidade de longo prazo;
- Aprimoramento da governança interna, com transparência e controle de despesas;
- Interlocução com credores e entidades esportivas, buscando conciliar os interesses econômicos e regulatórios;
- Acompanhamento técnico especializado, garantindo a observância integral das disposições da Lei 11.101/2005 e a adequada classificação de créditos.
Um novo caminho para a sustentabilidade dos clubes
A possibilidade de clubes recorrerem à Recuperação Judicial representa um marco importante na modernização da gestão esportiva no Brasil. Trata-se de uma via de reorganização institucional e de reequilíbrio econômico, que permite preservar o patrimônio esportivo e social das agremiações.
A recente decisão da Justiça Paulista consolida o entendimento de que o direito desportivo não está acima da lei empresarial, reforçando a segurança jurídica e a isonomia entre credores. Em um setor em que a paixão se mistura à economia, a Recuperação Judicial é uma alternativa legítima, técnica e socialmente necessária para garantir a continuidade da atividade e a integridade do sistema.

